21 de março de 2010

Carisma, vitórias e morte formam elementos na criação do mito Senna

De acordo com jornalistas que acompanharam a carreira de Ayrton Senna, a idolatria em torno dele se perpetuou graças a uma série de elementos. Desde o talento nato até a morte trágica e ao vivo
Dentre todos os ídolos que o Brasil teve no esporte ao longo da história, como Ronaldinho, Romário e Pelé no futebol, César Cielo na natação e Gustavo Kuerten no tênis, nenhum marcou tanto quanto Ayrton Senna. Mesmo depois de 16 anos da sua morte, a imagem do brasileiro carregando a bandeira após as vitórias, bem como a forma com a qual ele tomava o banho de champanhe no pódio ainda são lembradas com muito saudosismo pelos fãs. Mais que isso: todos os movimentos e frases ditas por Senna foram eternizadas após aquele trágico fim de semana em San Marino. Mas a construção do mito Ayrton Senna é algo que vai além do indiscutível talento que o brasileiro tinha para pilotar.

Para se entender tal idolatria em torno de Senna, é necessário avaliar alguns pontos separadamente. No entanto, uma coisa é clara e unânime entre jornalistas especializados que acompanharam a carreira do piloto: Senna não seria um dos principais ídolos do esporte mundial se não tivesse resultados, não fosse bom e, acima de tudo, se não vencesse. “Não fosse isso, não haveria marketing no mundo capaz de transformá-lo num ídolo”, afirmou Flavio Gomes, jornalista do site Grande Prêmio, dos canais ESPN de rádio e de TV e da rede "Bom Dia" de jornais.

O requisito básico: ganhar

Senna possuía o pré-requisito básico para um esportista se tornar um ídolo no Brasil, que é vencer. Analisados nos últimos 16 anos, exatamente o período desde a morte de Ayrton, os ídolos que surgiram vieram a partir de resultados expressivos e até inéditos no cenário mundial, como os títulos de Guga no tênis ou de Daiane dos Santos na ginástica artística. Contudo, da mesma forma como esses esportistas se tornaram grandes figuras no Brasil, conhecidas, admiradas e imitadas por jovens, a falta de resultados posteriores fez com que a mesma torcida viesse até a criticá-los. “O Brasil tem sempre uma idolatria para o vencedor. Você vê que, no Brasil, ou o esportista – seja qual for o esporte – é excelente ou então não vale nada”, declarou o jornalista Cláudio Carsughi, da rádio Jovem Pan. Quanto a isso, Senna não deixava a desejar.

Agora, outro ponto na construção do mito Senna, assim como da idolatria dos demais pilotos brasileiros, deve ser atribuído a uma coincidência ligada ao futebol na época. O último título do Brasil na Copa do Mundo antes do hiato de 24 anos havia sido em 1970. Deste ano até 1994 – ano da conquista do tetra –, o futebol brasileiro teve uma queda acentuada em nível internacional, enquanto na F1, o Brasil se sagrava bicampeão com Emerson Fittipaldi em 1972 e 1974, tri com Nelson Piquet em 1981, 1983 e 1987 e novamente tri com Senna em 1988, 1990 e 1991. Ou seja, os resultados do exterior vinham do automobilismo. Era nas pistas que o nome do país era disseminado para todo o mundo.

No caso específico de Senna, Luiz Alberto Pandini acredita que uma corrida em especial teve uma simbologia neste nascimento do ídolo. O assessor e jornalista da editora Letra Delta contou que em 1986, um dia depois da eliminação do Brasil pela França na Copa do Mundo do México, Senna venceu o GP dos Estados Unidos, em Detroit. “Ele pegou a bandeira brasileira e, quando subiu ao pódio, estava ao lado de dois derrotados franceses [Jacques Laffite, segundo colocado, e Alain Prost, o terceiro naquela prova].”

Imagem é tudo

A grata coincidência da vitória após a derrota no futebol casou muito bem com a ocasião, mas que não seria tão válida se Ayrton não fosse uma pessoa carismática. Porém, a simpatia apresentada por Senna é um tanto contestada por Pandini, que declarou que o brasileiro muitas vezes apresentava uma personalidade para a imprensa que nem sempre correspondia à realidade. O trabalho de marketing em cima do piloto também teve um papel fundamental, de acordo com o jornalista. “Ele assinou contrato com patrocinadores brasileiros, como o Banco Nacional, a Souza Cruz, que trabalhou muito a imagem dele com aquela coisa de ‘acelera, Ayrton’. Isso pegou de uma forma muito antes de ele ganhar uma corrida. Era um cara simpático, que já tinha mostrado um potencial enorme, então tudo casou direitinho.”
Para Gomes, no entanto, o impacto da Rede Globo, que é a detentora dos direitos de transmissão da F1, também é um ingrediente que deve ser acrescido a essa receita de formação do mito Ayrton Senna. Flavio ressaltou que a amizade que ligava o brasileiro e o jornalista Galvão Bueno, que é o responsável pela narração das corridas de F1 até os dias atuais, acabava mascarando algumas atitudes que Senna tinha fora daquele campo que era passado ao público através da televisão. “Naquela época, quase a totalidade das pessoas que seguiam F1 se informava pela Globo. E a Globo adora um ídolo, adora vender emoções baratas. Amizade com Galvão + linha editorial da Globo + carisma do piloto + vitórias = fórmula ideal para se criar um quase-deus”, afirmou o jornalista.

A fatalidade que transforma em mito

Mas nada significou tanto nessa propagação do mito quanto a maneira como Senna morreu. Em primeiro lugar, Pandini chama a atenção para o fato de o brasileiro ter sido o primeiro campeão a morrer durante a transmissão ao vivo de um GP. O impacto do violento acidente na curva Tamburello do GP de San Marino chocou o mundo, já que apontou falhas na categoria. Mais: Senna morreu estando ainda num estágio alto de competitividade – talvez não no auge, se for levado em consideração que o último título dele tinha sido três anos antes, mas ainda era um dos pilotos a ser batido. A partir disso, a imagem que ficou de Ayrton foi muito mais de um herói, um mártir, do que de um simples ídolo.

Além do mais, Carsughi destacou o fato de a morte, da maneira como foi e estando Senna ainda em plena forma, ter impedido de assistirmos a algo comum na carreira dos esportistas: o período de decadência do ídolo. “No automobilismo, temos o exemplo clássico do inglês Graham Hill, que no fim da carreira era uma figura folclórica nos boxes, quase uma gozação e, no entanto, tinha sido um excelente piloto, campeão do mundo. No momento em que você desaparece da vida terrena quando está no topo você perpetua aquela imagem. Isso de certa forma pode ser vantajoso”, avaliou o jornalista.

Pandini imaginou situações que eventualmente poderiam acontecer com Senna se ele tivesse sobrevivido àquele 1º de maio de 1994. “Vamos imaginar dois cenários. Ele para no auge da carreira, passa muitos anos e morre de uma causa qualquer. O impacto da morte é bem menor. Outro cenário: ele continua a correr, passa mais quatro anos na F1, não ganha nenhum título e o Schumacher ganha três nesse período. Ele não estaria no auge da carreira e já haveria uma curva descendente. Então, nesse caso, a idolatria já não seria tanta. E do jeito que brasileiro é, era capaz até de fazer piada com ele”, disse.

“Eu não acho que esse grau de idolatria, que está mais para devoção que qualquer outra coisa, seria o mesmo se ele não tivesse morrido. Hoje, se não fizesse nenhuma cagada político-econômica-esportiva, seria um ídolo, apenas, admirado, lembrado, mas não endeusado do jeito que é”, opinou Gomes.

Assim como há concordância quando o assunto é o talento de Senna, também há concordância no que diz respeito ao que seria do piloto se ele ainda estivesse vivo. É até possível deduzir através da carreira de pilotos que tiveram muitas conquistas e glórias na F1 e deixaram a categoria no momento de parar como seria a relação de Senna com essa idolatria em torno dele. Possivelmente ela não seria tão intensa como é, pois sem desmerecer os números de Ayrton, outros pilotos alcançaram marcas muito parecidas ou até melhores que as de Senna. O fato é que o destino se encarregou do gran finale, por mais triste e irônico que seja, para imortalizar a figura do piloto.

Fonte Warm Up

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